Carlos Sena
O museu é por excelência uma instituição compromissada com a conservação do patrimônio coletivo e com a formação da memória social. Desde sua mais remota origem no “gabinete de curiosidades” a prática do colecionismo constituiu um conjunto significativo de diversificados objetos patrimoniais. Em meio às revoluções do século XVIII eclodiu a necessidade de democratizar o acesso ao patrimônio cultural que culminou com a criação dos primeiros museus públicos (Museu Britânico 1753; Louvre, 1793), concomitantemente ao surgimento do conceito moderno de nação. Uma nova postura diante da história, da ciência e do conhecimento foi instaurada e com ela uma nova visão de subjetividade social e de memória simbólica coletiva, colocada a serviço do sentimento de pertencimento a uma sociedade particular e também a humanidade, defendida como universal.
Ao longo de pouco mais de 250 anos de história as instituições museológicas adquiriram distintas feições, ampliaram suas atuações, especializaram-se em áreas específicas de conhecimento, adquiriram metodologia própria, dilataram suas funções culturais, científicas e sociais, e, enfim, proliferaram pelo mundo.
Em conformidade com a conceituação atual, homologada pelo Comitê Internacional de Museus, o conceito de Museu dado pelo Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN, em outubro de 2005, fundamenta-se no imperativo de ser instituição aberta ao público a serviço do desenvolvimento da sociedade como agente da construção identitária que fornece uma percepção crítica da realidade, que permite a formulação de conhecimentos, e que desenvolve atividades de comunicação, exposição, documentação, investigação, interpretação e preservação de bens do patrimônio cultural, tornando-os acessíveis à população como recursos para ações educacionais, de inclusão social , de lazer e de exploração turística.
Particularmente, para esta proposta, interessa refletir sobre a natureza do museu que abriga e exibe coleções de obras de arte, compromissado com o estudo científico, com a história e a crítica das linguagens artísticas, pretéritas ou atuais, e, também, com a ressonância pública da produção de arte.
MuseuMuseuM é uma proposta dedicada a pensar as relações do museu com o patrimônio artístico e a refletir sobre as transformações no seu estatuto e na sua função social no decorrer da história. É uma operação de arte contemporânea que reúne, num mesmo espaço, elementos que refletem as salas de exposição, os procedimentos de interpretação, as técnicas de expografia e as obras presentes em três tipos de museus: o de belas artes, o de arte moderna e o de arte contemporânea.
O Museu de belas artes é fundado sobre alicerces dos primeiros museus de arte e guarda a história plástica ocidental, especialmente eurocêntrica, constituída pela representação figurativa ilusionista, conserva coleções de obras catalogadas pelas categorias e pelos gêneros tradicionais da arte, isoladas da realidade pela moldura e pelo pedestal, organizadas segundo critérios cronológicos e de origem do artista, mitificadas pelos discursos e sacralizadas pelas técnicas de exibição. Sob o aspecto arquitetônico, geralmente os museus de belas artes ocupam antigos palácios ou imponentes prédios públicos adaptados a suas funções.
Diferentemente do modelo anterior, os museus de arte moderna surgiram de projetos arquitetônicos próprios as suas funções, planejados para atender às novas necessidades acarretadas por transformações ocorridas nas linguagens artísticas com as vanguardas do século XX. Um novo modelo se desenvolveu como cubo branco, um espaço ideal, utópico e alheio as interferências externas, para abrigar uma produção que trabalhava a ausência de representação e de ilusão, a valorização da autonomia da obra em relação ao real e de seu processo de construção formal. A obra moderna ao negar a moldura e o pedestal, ou ao incorporá-los em sua estrutura exige procedimentos de montagem que destacam e isolam cada trabalho enfatizando sua presença. Essa forma de museu surge de manobras de altos industriais e atrelada ao capital privado.
O museu de arte contemporânea surgiu na segunda metade do século XX a partir da evolução do cubo branco modernista, sua arquitetura interna adquiriu natureza flexível a cada mostra e os aspectos externos tornaram-se grandiosos e espetaculares, como parte integrante de seu poder simbólico e de sua identidade na paisagem urbana. O caráter experimental da produção artística que rompe fronteiras entre categorias e que investiga a incorporação na arte de elementos alheios as convenções artísticas implicou no surgimento de uma crise no modelo museológico, levado a incorporar em suas coleções obras com materiais efêmeros, que reclamam pela participação do espectador, que dialogam com a cultura de massas e com os problemas da atualidade. A arte contemporânea levou o museu voltar-se criticamente para si. Nesse contexto, ocorre o questionamento dos paradigmas teóricos da história da arte e as exposições passam a ser montadas não mais pela ordem cronológica ou técnica, mas pela problematização de temas e de conceitos. O surgimento de novos museus de arte contemporânea torna-se um fenômeno disseminado pelo mundo como parte da estratégia do capitalismo globalizado.
Apesar das diferenças entre estes três modelos, os museus passam na atualidade por uma revisão de suas funções sociais e de suas estratégias de parceria entre instituição e empresas privadas. A instauração entre as funções do museu de um processo educativo preocupado com o entendimento da arte, com a aproximação do público a obra, com a experiência estética mediada por chaves de leitura e por jogos de interpretação tem se revelado como uma das grandes transformações na instituição museal. Nesse sentido, o museu democratiza seu patrimônio material e simbólico e minimiza as distâncias que excluem grande parte da população do contato com os bens culturais. Com a inserção da cultura na economia de mercado seguindo a lógica do consumo, e com o investimento de grandes patrocínios as exposições tornaram-se espetáculos de alto custo que exigem retorno em grande visibilidade, e assim o museu passou a ter um ponto de contato com a indústria cultural e com o público de massa.
Dentro do contexto brasileiro, os museus de arte apesar de terem suas problemáticas específicas dialogam com as questões debatidas no cenário internacional da museologia. Há uma defasagem histórica no surgimento dos museus de arte no país, pois o Museu Nacional de Belas Artes – com a mais importante coleção nacional no gênero – somente foi criado durante a era Vargas, como muitos dos museus brasileiros; mas, há também uma sincronia, pois os museus de arte moderna surgiram com o processo de industrialização e metropolização de grandes cidades com São Paulo e Rio de Janeiro e como instituições atreladas ao capital privado. Como fenômeno mais recente, temos o surgimento de museus de arte em várias cidades de diversas regiões, e alguns com grandes investimentos na construção do edifício e no aparelhamento técnico.
No circuito da produção artística contemporânea, muito dos problemas discutidos pela instituição museal são também discutidos por inúmeros artistas que utilizam da estrutura física, do patrimônio, dos procedimentos técnicos e dos métodos de catalogação desenvolvidas pelo museu como material para a elaboração de suas obras. Armado por estas discussões surge uma categoria de obra intitulada “museu de artista”, um museu ficcional onde o artista também opera como curador e como museólogo, que tanto trabalha com a legitimidade social conferida pelo museu à arte quanto instala dispositivos críticos para analisar estes elementos de legitimação. São obras que indagam sobre as conexões, aberturas, limites da arte e do museu que a exibe. Uma parte da arte conceitual que marcou os anos 60 e 70 deslocou a atenção do observador da obra para o espaço em que estava exibida desencadeando uma crítica à instituição que permanece ainda vigorante.
O artista belga Marcel Broodthaers criou o seu próprio Museu de Arte Moderna, com departamentos e seções distintas questionando os sistemas classificatórios. O artista alemão Hans Haacke colocou em xeque as relações mantidas entre o museu e os sistemas de poder político. O estadunidense Mark Dion opera com ironia releituras do museu de história natural questionando seus sistemas de coleta, classificação, conservação. O colombiano Alberto Baraya desenvolve um museu de botânica, um “herbário de plantas artificiais” que segue padrões das coleções formadas pelas expedições científicas dos séculos XVIII e XIX. Brasileira radicada na Áustria, Inês Lombardi produz como obras maquetes e fotografias dos museus em que apresenta exposições. Entre os artistas brasileiros que tomaram o museu como material para seus processos criativos encontram-se: o paulista Wesley Duke Lee, que utilizou de reproduções para criar uma narrativa museal sobre arte brasileira; a mineira Mabe Bethônico, que além de trabalhar com coleções de coisas triviais do cotidiano, trabalha também com arquivos de instituições culturais; a argentina naturalizada brasileira, Carla Zaccagnini que usa peças de acervos museológicos; e o paraibano Fabiano Gonper, que criou um museu com seu próprio nome para expor sua própria obra, obras de outros artistas e de coleções de museus.
Esta proposta, MuseuMuseuM, opera dentro desse quadro teórico e cultural instituindo um processo de metalinguagem que amalgama expedientes da arte contemporânea a diversos elementos museológicos, criando um museu dentro de um museu, sucessivamente. É uma colagem de referências históricas, estéticas, estilísticas, espaciais e técnicas extraídas dos museus de belas artes, arte moderna e arte contemporânea, bem como do patrimônio da história da arte européia, brasileira e goiana, que instala uma cadeia de reflexões sobre o que une e separa essas diferentes histórias. As fronteiras entre arte erudita, arte popular e de massa são revistas por olhar crítico que analisa os fundamentos, a constituição plástica e os espaços de legitimação de cada campo, embaralhando tais discriminações em uma operação de (re)apropriação de imagens de domínio comum para a criação de uma imagem singular, que discute em si problemas referentes ao colecionismo, a categorização, a valoração, a sacralização e a institucionalização dos objetos de arte.
É uma proposta que mescla as funções expositivas e educativas do museu para criar um laboratório experimental e orgânico, onde as atividades do artista, do curador, do museólogo e do educador formem uma unidade com a participação do público, e onde as diretrizes da universidade em pesquisa ensino e extensão sejam convergentes. A experiência estética aliada ao processo de conscientização do funcionamento dos aparelhos de legitimação da arte, inclusive como instâncias de poder e de difusão de ideologias, busca desencadear no público miríades de reflexões sobre como o patrimônio registra a história, como é construída a narrativa sobre essa história, o que faz um objeto ser transformado em patrimônio coletivo, como o objeto é sacralizado no museu, como (des)sacralizar para aproximar, como o patrimônio pode ser absorvido por maior público, como a cultura de massas tem se apropriado das representações patrimoniais, como o erudito se comporta quando assimilado pela cultura de massas, e sobre como o artista pode contribuir para o debate sobre os problemas do museu na atualidade.